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Projeto de escritor. To sempre de malas prontas pra lugar nenhum por que até hoje não achei casa alguma dentro de mim. (Pra saber mais, clique ali em Quem eu sou, à direita)

domingo, 21 de julho de 2013

Amanhã

            Ao que ainda me recordo meu nome é Carlos. Ando meio zonzo pelos choques que me deram. Estou surdo da orelha esquerda, embora ouça muito bem os murmúrios de esperança do povo e da tentativa silenciosa de cala-lo. Tenho 27 anos bem vividos, dentre eles, 5 pelo Aliança Nacional Libertadora. Meus cabelos crespos hoje estão cortados. Devem estar no chão de qualquer DOI-Codi. As marcas pelo meu corpo são eternas, assim como a chama que floresce a cada pancada. Murros e chutes são comuns nesse nordestino. Sou cabra macho, resisti a quatro interrogatórios daqueles assassinos. Traidores da pátria, estão enganando a si mesmos, defendendo aqueles que ao virar as costas irão fuzila-lo.
            Não sei bem o que houve com Adrian, Lauro ou Helvécio. Não tenho nenhum resquício de notícias de minha menina, Marjorie. Ela me entregou, assim como tantos outros companheiros que se renderam. Não os lamento, cada um tem seu limite. A luta armada continua por trás dessas grades. Os lírios de nossos campos não tem o mesmo brilho. As flores de nosso querido país são regadas a ódio e sangue. As cores de nossa bandeira estão se esvaindo, assim como as minhas esperanças de sobreviver aqui neste lugar. Se não fosse minha orientação cristã, teria já praticado o suicídio. É o que mais me passa pela cabeça, porém não tenho nenhum instrumento a não ser essa arma apontada a minha cabeça.
            Estou em um cubículo escuro. Me acostumei a lugares pequenos e fechados desde os tempos de Grêmios Estudantis. Não me é concedido o cigarro. O lugar é fétido, cheira a azedume com que sou tratado. Há uma doce angústia que paira no ar neste fosso. Fezes estão por todos os lados como se estivesse em uma gaiola. Os excrementos me fazem companhia, e para os militares, sou um parente próximo deles para ficar tão perto assim. Converso com minhas cicatrizes, elas me dizem para resistir. Os hematomas dão cor ao corpo branco. O sangue se concentra em minha boca, nos ferimentos. São enormes coágulos e alguns edemas nas costas e braços oriundos das agressões que sofri. Meus pensamentos procuram me confortar, dar uma palavra amiga. Minha cabeça dói e quase me impede de pensar, mas nem as dores nem a reclusão me evitam de acreditar que este é um pesadelo ao qual um dia vou acordar.
            Tento ser otimista. Marighella estaria orgulhoso de mim. Estaria,  se não estivesse morto. Nosso mais nobre companheiro foi pego em meio à batalha. Tiros o tiraram da luta, embora nossos irmãos ainda lutem por ele e pelo nosso Brasil. Liberdade a qualquer custo como o próprio Carlos dizia. Não tenho seus livros aqui, minha rotina são os espancamentos e a horrível alimentação. Mijam no arroz e misturam com carne de terceira. Isso quando tem carne. Não me lembro quantas refeições fiz até agora, mas sinto meu estômago roncar cada vez menos. Ele está se acostumando a se alimentar da angústia e da tristeza latente em meu olhar.  Estes traumas pra sempre irão me aprisionar. A ditadura conseguiu enclausurar o principal: o nosso consciente, mas mais do que isso, o consciente coletivo.
    Estou tentando me agarrar ao que posso, embora no momento minhas contas estejam atrasando e toda minha poupança tenha sido revirada. Como foi meu apartamento quando me encontraram. Tudo quebrado, livros revirados, móveis destruídos. Felizes são os exilados. Felizes são os ignorantes, os inertes ao que está acontecendo. Felizes são as crianças e inocentes que não veem o ocorrido. Perdão e misericórdia. Não para mim, mas para as mulheres estupradas e aos futuros filhos da ditadura. Misericórdia aos que se entregaram e aqueles que fingem não ver. Perdão aos amaldiçoados sem alma que ao defender o país dos “terroristas”, estão trazendo apenas o regresso de volta. Orwell previu isso, mas não previu o amanhã. Não sei o que será de mim amanhã. Nem mesmo o que acontecerá com minha pátria verde e amarela. Tento me confortar com a poesia de Chico. “Amanhã vai ser outro dia / Amanhã vai ser outro dia”. Eu espero que Chico esteja certo.


 … queira-te eu tanto, e de tal modo em suma, que não exista força humana alguma que esta paixão embriagadora dome. E que eu por ti, se torturado for, possa feliz, indiferente à dor, morrer sorrindo a murmurar teu nome
— LIBERDADE, Carlos Marighella

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